domingo, 20 de setembro de 2009

Serra veta cobrança em hospital público

Governador sancionou projeto de lei que permite que todos os hospitais estaduais sejam dirigidos por organizações sociais (OSs)

Para justificar veto à reserva de 25% dos atendimentos a particulares e planos de saúde, Serra cita uma lei federal e outra estadual

RICARDO WESTIN
DA REPORTAGEM LOCAL

O governador José Serra (PSDB) sancionou o projeto de lei que permite que todos os hospitais públicos da rede estadual sejam dirigidos por OSs (organizações sociais), mas vetou o artigo que possibilitaria que eles atendessem, mediante cobrança, pacientes particulares e com plano de saúde. A decisão está na edição de hoje do "Diário Oficial" do Estado.
O projeto de lei original, de autoria do governador, só previa a permissão para a terceirização. A reserva de até 25% dos atendimentos a pacientes particulares e com plano de saúde foi acrescentada durante a tramitação na Assembleia, por uma emenda da deputada Maria Lúcia Amary (PSDB).
Entidades de defesa do SUS (Sistema Único de Saúde), contrárias aos termos do projeto de lei, apostavam que no final a cobrança nos hospitais públicos seria vetada. Segundo elas, o governo apoiou essa emenda com o objetivo de provocar uma grande polêmica em torno da cobrança e, assim, aprovar sem questionamentos a terceirização da gestão dos hospitais.
De acordo com o governador, a emenda da deputada tucana foi vetada porque uma lei federal e outra estadual obrigam a operadora de plano de saúde, quando seu cliente é atendido num hospital público, a fazer o pagamento ao SUS. As leis não falam em paciente particular.
A Folha procurou a deputada Maria Lúcia Amary ontem, mas não conseguiu contato. Questionada antes do veto sobre não ser especialista em saúde -uma das críticas de entidades de saúde-, ela respondeu: "Eu não conheço todos os assuntos, mas procurei me inteirar. [Se fossem necessários conhecimentos específicos,] Lula não seria presidente. Ele não tem nem curso superior e discute qualquer assunto, inclusive os que ele não conhece".
Terceirização
OSs são entidades privadas sem fins lucrativos habilitadas para gerir hospitais, laboratórios e postos de saúde públicos. Recebem dinheiro dos cofres públicos. O governo continua sendo o dono dos hospitais e exige que elas cumpram metas.
Esse modelo começou a ser utilizado em São Paulo em 1998. Hoje o Estado conta com 25 hospitais geridos por organizações sociais.
Até agora, a lei permitia que apenas os novos hospitais funcionassem sob esse modelo. Com o projeto de lei sancionado por Serra, os antigos também podem ser transferidos para a gestão das OSs.
O governo, porém, afirmou que pretende terceirizar apenas a direção do hospital Brigadeiro, na capital paulista, para que ele, no curto prazo, se transforme num centro de transplantes.
O Estado adota o sistema de OSs porque essas entidades privadas não têm as amarras do poder público. Podem comprar sem licitação, contratar sem concurso público e demitir sem processo administrativo. Segundo o governo, custam menos e produzem mais.
Relatórios do Banco Mundial e da Fundação Getúlio Vargas apontam as vantagens das OSs. O hospital Albert Einstein também defende o modelo -em parceria com uma OS, o Einstein administra um hospital municipal da capital.
"A lei aperfeiçoa um modelo que já se mostrou eficiente em São Paulo. Tanto que tem sido utilizado até mesmo por prefeituras do PT, partido contrário à lei", diz Luiz Roberto Barradas, secretário estadual de Saúde.
O modelo é questionado. Há duas ações diretas de inconstitucionalidade contra o sistema de OSs esperando uma decisão do Supremo Tribunal Federal.





Matéria publicada originalmente na Folha de São Paulo do dia 19/09/09.

Secretário diz que só um hospital público de SP será terceirizado

Luiz Roberto Barradas, responsável pela Saúde no Estado, afirma que demais unidades antigas não serão geridas por entidade privada
Alvo de críticas feitas por defensores do SUS, projeto de lei que autoriza terceirização de toda a rede aguarda aval do governador José Serra

RICARDO WESTIN
DA REPORTAGEM LOCAL

De todos os hospitais estaduais em funcionamento, o governo de São Paulo diz que só o hospital Brigadeiro, na capital, terá a direção transferida para uma OS (organização social).
Segundo o secretário estadual da Saúde, Luiz Roberto Barradas, o objetivo é rapidamente transformar o hospital Brigadeiro num centro de transplantes de rim e fígado.
"Só o Brigadeiro [terá a gestão transferida para uma OS]. Os demais hospitais vão continuar como estão [administrados diretamente pelo governo], disse Barradas à Folha.
Além do Brigadeiro, ele quer terceirizar a gestão dos laboratórios de exames que funcionam nos hospitais estaduais.
Assim, o secretário tenta diminuir as críticas ao projeto de lei que permite que OSs assumam todos os hospitais estaduais, inclusive antigos. Hoje só os novos podem ser terceirizados. De autoria do governo, o texto foi aprovado pela Assembleia e depende do aval do governador José Serra (PSDB).
Sindicatos e entidades que defendem o SUS (Sistema Único de Saúde) dizem que Serra está privatizando a saúde. O Conselho Estadual de Saúde também condena o modelo.
Pelo sistema de OSs, o hospital e o dinheiro aplicado são do Estado. Uma entidade privada sem fins lucrativos fica responsável por toda a administração.
Segundo o governo, hospitais geridos por OSs produzem mais e custam menos, já que as entidades privadas podem comprar remédio sem licitação, contratar funcionário sem concurso público e demitir sem processo administrativo.
O modelo é adotado em São Paulo desde 1998. Atualmente 25 hospitais funcionam assim.
"Preciso de uma OS porque sozinho não consigo no curto prazo transformar o hospital Brigadeiro em centro de transplantes", afirmou Barradas.
O projeto aprovado pela Assembleia recebeu uma emenda da deputada Maria Lúcia Amary (PSDB) que permite aos hospitais públicos geridos por OSs separar 25% dos atendimentos a pacientes particulares ou com plano de saúde. A proposta também é criticada.
Barradas afirmou que Serra não sabe se sancionará ou vetará esse trecho, porque o texto ainda não chegou às mãos do governador. O secretário, porém, se disse favorável à ideia.
Segundo ele, não será repetido o "erro" do InCor e do Hospital das Clínicas, que têm "dupla fila" -uma rápida para os planos de saúde e outra lenta para o SUS. Para isso, só após o atendimento é que o hospital identificará se o paciente tem convênio médico ou não. Em caso positivo, o plano de saúde terá de fazer o pagamento à OS.
Pelo sistema atual, o plano deve ressarcir o SUS. "Mas o valor pago ao SUS é muito baixo. Nem todas as operadoras pagam. Aqui em São Paulo o dinheiro terá de ser pago à OS, para aplicá-lo no hospital."
O secretário não sabe o motivo de constar, na emenda da deputada tucana, o limite de 25% e a referência a pacientes particulares. Ela não consultou a secretaria para redigir o seu texto. Barradas disse que é preciso analisar se é inconstitucional, como afirmam os críticos.

Para entidades, governo cria polêmica para não discutir OSs


DA REPORTAGEM LOCAL

O presidente do Conselho Nacional de Saúde, Francisco Batista Júnior, acusa o governo paulista de criar uma polêmica artificial ao propor, por meio de uma deputada do PSDB, que hospitais públicos atendam a pacientes particulares e com planos de saúde, mediante uma cobrança.
"Enquanto discutimos esse absurdo, deixamos de falar das OSs [está no mesmo projeto de lei a permissão para que as organizações sociais atuem em toda a rede estadual]. Para não debater esse tema, o governo criou uma polêmica maior. É o famoso "boi de piranha'", diz.
Têm a mesma opinião Benedito de Oliveira, presidente do Sindsaúde (sindicato dos funcionários estaduais de saúde), e Gilson Carvalho, consultor do Conasems (entidade dos secretários municipais da Saúde).
"E o governador leva a melhor. Na hipótese de vetar os planos de saúde e os pacientes particulares, ele sai como aquele que não permitiu que o hospital público cobrasse pelo atendimento. Enquanto isso, consegue que as OSs cheguem aos hospitais já construídos", afirma Carvalho.
Entidades de defesa do SUS (Sistema Único de Saúde) participaram ontem de um ato na Câmara Municipal de São Paulo. Criticaram, entre outros pontos, as políticas paulistas.
O governo diz que não participou da elaboração da emenda da deputada Maria Lúcia Amary (PSDB) que incluiu os planos de saúde no projeto de lei original. E afirma que as acusações são fruto de briga política. "O PT tem hospital com OSs em Estados e prefeituras. Por que não criticam?", pergunta o secretário da Saúde, Luiz Roberto Barradas. (RW)

Matéria publicada originalmente na Folha de São Paulo do dia 17/09/09.

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Saúde demanda políticas públicas centradas no interesse social

Juan Carlos Aneiros Fernandez, pesquisador e secretário executivo do Cepedoc Cidades Saudáveis - (Centro de Estudos, Pesquisa e Documentação), explica o que é uma cidade saudável, enfatizando a importância de se terem políticas públicas centradas no interesse social e participação comunitária na definição dos problemas e das demandas na área de saúde.

Criado em 2000, por integrantes da "Oficina Permanente de Cidades Saudáveis", organizada pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), o Cepedoc Cidades Saudáveis auxilia municípios e comunidades a ingressarem no Movimento por Cidades Saudáveis e realiza estudos e pesquisas de melhoria de qualidade de vida nas cidades.


Mobilizadores COEP - Algumas cidades de todo o mundo concentram grandes contingentes populacionais e enfrentam diversos desafios. Quais os principais problemas em termos de promoção da saúde enfrentados por essas grandes cidades?

R. Como a promoção da saúde atua com foco nos determinantes sociais da saúde*1, os problemas que se tem de enfrentar nessas situações não diferem daqueles reconhecidos por todas as áreas como decorrentes dos processos de urbanização – no nosso caso, uma urbanização acelerada e sem um planejamento adequado. São alguns exemplos a desigualdade social, a precariedade de infraestrutura urbana e de serviços públicos em diversos territórios da cidade, a degradação ambiental, a contaminação do ar e dos mananciais de água, o tempo gasto com deslocamentos dentro da cidade.
Poderíamos destacar o fato de que os óbitos em São Paulo, a exemplo do que ocorre em outras grandes cidades brasileiras, decorrem primeiramente de doenças do aparelho circulatório, seguidas de causas externas, que incluem acidentes e outros tipos de violência. Ambos os grupos de causas poderiam ser minimizados com modificações nos modos de vida e nas condições geradoras de estresse. Teríamos assim um leque bastante amplo de ações possíveis, desde aquelas relacionadas diretamente à escolha de estilos de vida saudáveis pelos indivíduos - e da criação das condições necessárias a essa escolha – até aquelas que asseguram proteção social e o enfrentamento das iniquidades.

Mobilizadores COEP - De que forma esses problemas podem ser enfrentados, especialmente nos países em desenvolvimento, como o Brasil?

R. Colocando a saúde da população como foco das políticas públicas de modo geral. Isso significa partir do pressuposto de que não existe desenvolvimento se não há justiça social. Parece ser necessário inverter a lógica do interesse econômico, do mercado e do lucro a qualquer preço. A área da saúde pode oferecer um bom exemplo para isso.
Não adianta insistir apenas na prática curativa, na especialização para o trato de doenças mais raras, no desenvolvimento desenfreado de medicamentos, se as pessoas estão morrendo por causas associadas à pobreza, à falta de oportunidades de realização pessoal, à falta de saneamento básico e de acesso a níveis básicos de educação e proteção social.
O Brasil é um bom exemplo para a garantia de acesso a serviços via Sistema Único de Saúde. O SUS expressa a mobilização social em torno de um novo sanitarismo que realizou a crítica que estou tentando resumir. A concepção desse sistema de saúde e sua implementação corroboram para a produção da saúde nos termos aqui apresentados. Porém, também o SUS sofre as pressões do interesse e dos agentes econômicos em níveis nacional e internacional. A defesa e o fortalecimento desse sistema para que ele possa cumprir na íntegra suas promessas de atenção integral e de enfrentamento de iniquidades é certamente uma das formas de enfrentar os problemas de nosso tempo.
Outra questão de extrema importância para se enfrentar os problemas atuais nas grandes cidades parece ser a descentralização político-administrativa. Essa seria uma forma de tornar mais acessível aos indivíduos e comunidades a gestão de políticas públicas.

Mobilizadores COEP - Como a forma de desenvolvimento do Brasil tem afetado as condições de saúde da população? Quais os principais desafios hoje?

R. Acho que já está respondido, mas talvez caiba acrescentar que temos tido alguns avanços recentemente. Mal ou bem, já existe alguma preocupação ambiental instituída e um movimento, ainda que pequeno, de redução das desigualdades. Penso que sejam muitos os grandes desafios, mas o principal para relacionar desenvolvimento e saúde talvez seja uma mudança de paradigma, tanto em relação ao desenvolvimento, frequentemente associado apenas ao crescimento econômico, quanto em relação à saúde, frequentemente associada à ausência de doenças. Isso quer dizer que temos como desafio pensar que não há um desenvolvimento de fato se não houver produção e ampliação da qualidade de vida.

Mobilizadores COEP - O que caracteriza uma cidade saudável?

R. Um forte compromisso de autoridades, comunidades e outros atores sociais de buscar permanentemente melhorias na qualidade de vida da população. Uma cidade saudável é aquela que assume os princípios da participação social, intersetorialidade, sustentabilidade e equidade na gestão das políticas públicas.

Mobilizadores COEP - Quais os principais indicadores de uma cidade saudável?

R. É muito difícil eleger indicadores que sejam adequados indistintamente a todas as cidades. É possível ter cidades saudáveis que apresentem diferenças significativas em relação a um mesmo indicador. Em uma determinada cidade as pessoas e grupos envolvidos na construção de uma cidade saudável podem avaliar que a inexistência de áreas de lazer seja um dos entraves à obtenção de melhores níveis de qualidade de vida. Em outra cidade, o indicador principal pode ser o acesso a cursos profissionalizantes ou voltados para a geração de renda. Em outro caso, elevar o grau de confiança da população no poder público, um dos elementos importantes da chamada governança, pode ser o desafio para construir a cidade saudável. Reconheço a dificuldade para operar com indicadores nessa perspectiva, o que dificulta muito a comparação e, sobretudo, a classificação de municípios, mas ao mesmo tempo vejo também nisso uma grande potência, isto é, a proposta de cidades saudáveis é aberta o bastante para que seus atores se sintam confortáveis dentro dela. Por isso, a melhor resposta a esta pergunta seria que os principais indicadores de uma cidade saudável são aqueles que os atores envolvidos elegerem como significativos para aferir melhorias na qualidade de vida.

Mobilizadores COEP - Quais os objetivos do Movimento por Cidades Saudáveis? Como e quando foi criado?

R. O objetivo da estratégia de Cidades Saudáveis é promover saúde. O movimento surgiu como uma proposta da Organização Mundial de Saúde – Organização Pan-Americana de Saúde (OMS-OPAS), em meados dos anos de 1980, que seria profícua para implementar as estratégias definidas na Carta de Ottawa de 1986*2, aprovada na primeira Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde.
O documento surge em um contexto de democratização dos países sul e centro-americanos e, portanto, comprometido com a idéia do “empowerment”*3 social e do desenvolvimento comunitário. Do ponto de vista da área da saúde propriamente dita, a promoção da saúde e o movimento por cidades saudáveis – uma de suas estratégias - expressam também uma mudança nos modos de entender e de se produzir saúde. Reafirmam a superação das práticas de saúde centradas na atenção médica curativa, para buscar a globalidade de fatores que determinam a saúde, como desigualdade de renda, condições de moradia e trabalho, educação etc.
O movimento buscava fomentar a definição de políticas públicas saudáveis (preocupação explícita com a saúde e equidade), promover a construção de parcerias, a troca de experiências, a experimentação de modelos de gestão integrada e participativa, assim como o estímulo às práticas de avaliação participativas.

Mobilizadores COEP - De que forma as comunidades são envolvidas no movimento? E o que é feito para fomentar essa participação?

R. Não há uma receita para o modo de envolvimento das comunidades. Depende das condições dadas em cada uma das situações (tamanho da cidade, estrutura preexistente de participação ou controle social, tipo de plano de ação imaginado, local de onde parte a experiência). De toda forma, sugere-se a constituição de um comitê intersetorial, que inclua governo e sociedade civil, a elaboração participativa de um planejamento estratégico, a realização de oficinas de diagnóstico de problemas e potencialidades etc.

Mobilizadores COEP - Como as associações comunitárias podem atuar para equacionar problemas de saúde e promover melhores condições de vida para suas populações?

R. Saúde e qualidade de vida têm uma dimensão subjetiva de extrema relevância. Os sujeitos individuais e coletivos devem ter a oportunidade de refletir sobre quais sejam seus problemas de saúde e suas aspirações nesse sentido. Ver reconhecidos seus saberes e poder integrá-los ou relacioná-los a outros saberes é uma forma de ampliar a capacidade de controle sobre os determinantes sociais da saúde.
Promover a reflexão sobre saúde entre seus associados, buscar o estabelecimento de redes e parcerias com outras organizações, respeitando um quadro de pluralidade e diversidade. Perceber o quanto a saúde depende não apenas dos serviços de saúde, mas das políticas públicas de um modo geral, e, em razão disso, engajar-se e aproveitar todas as oportunidades existentes de atuação na esfera pública parece ser um bom caminho para a promoção de melhorias na qualidade de vida das populações. Conhecer mais sobre a gestão pública, ocupar e alargar os espaços de participação, acompanhamento e fiscalização.

Mobilizadores COEP - O que os cidadãos podem fazer para reivindicar uma cidade mais saudável?

R. Talvez não se trate tanto de reivindicar uma cidade saudável, mas sim de ajudar a construí-la. A perspectiva da estratégia de cidades saudáveis é colaborativa, é de corresponsabilidade, de pactuação, negociação e assim por diante. Uma cidade saudável se constrói com justiça social, com cidadania, com relações solidárias, com envolvimento com as questões públicas, com ampliação da confiança entre indivíduos, entre grupos e entre estes e os governos.

Mobilizadores COEP - Segundo informações que constam no site do movimento, as ações são localizadas em São Paulo. Existe a possibilidade de ampliar o campo de atuação? O que seria necessário para isso? Como um município ou comunidade pode participar?

R. A estratégia de cidades saudáveis não teve no Brasil o mesmo desenvolvimento verificado na América Latina de modo geral. Ao longo dos últimos 15 ou 20 anos, diversas cidades por todo o país adotaram e abandonaram essa estratégia, entre elas algumas capitais como Curitiba (PR), Goiânia (GO) e São Paulo (SP), em uma de suas subprefeituras.
Entre outras, são razões para isso, por um lado, a característica de nossa cultura política e de gestão que favorece a descontinuidade das políticas e, por outro lado, a inexistência de uma política nacional de fomento e/ou de custeio de iniciativas dessa natureza. Há um campo aberto para atuação. Exemplo disso são as redes de municípios saudáveis existentes tanto em Pernambuco, fomentada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), como aquela fomentada por pesquisadores ligados à Unicamp na região de Campinas (SP).
Também, há cerca de um ano, houve uma retomada da estratégia de Cidades Saudáveis por parte do Ministério da Saúde brasileiro, que promoveu o encontro e constituição de um comitê provisório da rede de cidades saudáveis no Brasil. Isso pode, em curto prazo, produzir uma ampliação do campo de atuação, já que novas medidas de estímulo à adoção da estratégia podem surgir desses encontros.

Mobilizadores COEP - O que uma rede nacional de mobilização social como o COEP pode fazer para contribuir para a disseminação de comunidades saudáveis? Quais as principais ações a serem adotadas?

R. Disponibilizar informações acerca de uma visão ampliada de saúde que vai além da ausência de doenças. Acompanhar de perto, ou de dentro, esse movimento recente do Ministério da Saúde a que me referi. Convocar indivíduos e organizações sociais a ocuparem, de fato, os espaços abertos de interlocução com políticas públicas de modo geral, de forma a torná-los cada vez mais amplos, confortáveis e significativos.
Nosso site é um problema sério, isto é, parece que não conseguimos dar conta de mantê-lo atualizado, mas há um “Guia de gestores” na seção de publicações, que é um material da OPAS que ajudamos a elaborar e que traz, de modo muito simples, propostas para constituir municípios e comunidades saudáveis. Ele poderia também ser divulgado.

Notas:
*1 Determinantes sociais de saúde (DSS) são as condições sociais em que as pessoas vivem e trabalham ou "as características sociais dentro das quais a vida transcorre” (Tarlov,1996). Alguns desses determinantes são biológicos ou estão sob maior controle do indivíduo (ex: certas condutas individuais); outros, de abrangência coletiva, são dependentes de políticas públicas e das condições políticas, econômicas, sociais, culturais e ambientais existentes. Para promover saúde é preciso atuar sobre os determinantes (pessoais e não-pessoais) da saúde.


*2 A Carta de Ottawa reafirma a importância da promoção à saúde e aponta, principalmente, a influência dos aspectos sociais sobre a saúde dos indivíduos e da população, caracterizando-se como o "processo de capacitação da comunidade para atuar na melhoria de sua qualidade de vida e saúde, incluindo uma maior participação no controle deste processo". Ela enfatiza a importância de cinco estratégias fundamentais para se alcançar plena saúde: política pública, ambiente saudável, reforço da ação comunitária, criação de habilidades pessoais e reorientação do serviço de saúde.


*3 Empowerment, que tem sido traduzido em português pela palavra empoderamento, parte da idéia de dar às pessoas o poder, a liberdade e a informação que lhes permitam tomar decisões e participar ativamente de processos sociais, organizacionais, etc.

Entrevista concedida a: Eliane Araujo
Edição: Eliane Araujo e Renata Olivieri
Mobilizadores COEP (Rede de incentivo à prática social criada pelo Comitê de Entidades no Combate à Fome e Pela Vida)

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Carta de São José dos Campos

A Associação Paulista de Saúde Pública (APSP) divulga a Carta de São José dos Campos, documento elaborado durante o 11º Congresso Paulista de Saúde Pública.

O evento teve como tema central “Saúde Pública e Crise (S): fronteiras e caminhos”, e aconteceu em agosto, em São José dos Campos.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

"Com ou sem a nova CPMF, ministro da Saúde continuará de pires na mão", diz Adib Jatene

Rodrigo Martins

Do UOL Notícias
Em São Paulo
 
Ex-ministro da Saúde, o cardiologista acreano Adib Jatene, diretor do Hospital do Coração (HCor), tem sustentado há tempos a necessidade de se aumentar os investimentos públicos no Sistema Único de Saúde (SUS). Para ele, as cenas de horror e os recorrentes problemas no atendimento dos hospitais estatais não derivam de problemas de gestão, e sim da crônica falta de recursos para a assistência médica gratuita. Considerado o pai da CPMF (Contribuição Provisória sobre a Movimentação Financeira), ele lutou pela aprovação do tributo em 1996, quando administrava a pasta da Saúde no governo de Fernando Henrique Cardoso.
Coerente com sua trajetória, o médico continua defendendo a criação de um tributo que vincule recursos para a saúde, razão pela qual cerra fileiras em defesa da Contribuição Social para a Saúde (CSS), proposta do governo Lula para ressuscitar a CPMF, com a cobrança de uma pequena porcentagem sobre as transações bancárias de empresas e pessoas físicas, objetivando a criação de um fundo para a saúde.

"Com os recursos de que dispõe hoje, é impossível o setor público oferecer uma assistência melhor às pessoas", avalia Jatene. "O ministro José Gomes Temporão está pedindo R$ 10 bilhões a mais. É pouco. Ele precisa de, no mínimo, mais R$ 50 bilhões. Com ou sem a nova CPMF, ele continuará com o pires da mão", conclui. Confira, a seguir, a entrevista que o médico concedeu ao UOL Notícias.



UOL Notícias: Por que o senhor defende a criação de um tributo para a saúde e a que atribui toda a mobilização pelo fim da CPMF?

Adib Jatene: A mobilização contra a CPMF surgiu da aversão aos impostos do setor mais diferenciado da sociedade. Os mais ricos resistem em assumir que são responsáveis por suprir necessidades da população de baixa renda. Há tempos a saúde pública precisa de mais recursos, especialmente após a ampliação da assistência a partir da Constituição de 1988. Mas, no momento em que se universalizou o acesso à saúde, simultaneamente, a Previdência Social se retirou do financiamento da assistência médica, causando um déficit para a saúde que até hoje não foi resolvido.

UOL Notícias: Isso porque, antes da Constituição de 1988, só tinha acesso à saúde pública quem tinha emprego formal e contribuía para a Previdência...

Adib Jatene: Sim, e eu já disse inúmeras vezes que os representantes regionais do extinto Inamps [Instituto Nacional Assistência Médica da Previdência Social] tinham mais poder que os secretários estaduais da saúde. Naquela época, uma grande parcela da população eram os indigentes, que não tinham direito a nada. E indigente era qualquer cidadão que não tinha emprego formal nem condições de pagar um hospital particular. No momento que universalizamos o atendimento, houve simultaneamente a crise da Previdência Social. O número de aposentados cresceu muito, até por conta da inclusão dos trabalhadores rurais no regime de aposentadorias. A Previdência chegou à conclusão de que não podia mais oferecer recursos para a saúde. O Inamps passou para o guarda-chuva do Ministério da Saúde e foram retirados todos os recursos da Previdência. Isso representou um rombo de mais de 50% no orçamento federal para a saúde. É isso que vem se tentando corrigir sem sucesso.

UOL Notícias: O senhor acha que a CPMF era um bom tributo?

Adib Jatene: Não estou discutindo se o tributo é bom ou ruim. Ofereçam-me outro tributo que seja melhor ou recursos de outra fonte. Houve oposição cerrada à CPMF porque ninguém queria pagar. Extinguiram-se R$ 40 bilhões, recursos que eram utilizados pelo governo. Você acha que, com as demandas do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) e de uma série de outras ações do governo, eles vão tirar recursos de outras áreas para dar para a saúde? Um país democrático tem que entender que o governo não gera recursos. Ele arrecada da atividade privada. Todo o dinheiro que governo tem sai das empresas, das pessoas. Se o governo passasse a imprimir dinheiro, criaria inflação. Em vez disso, ele cobra de quem pode pagar. Mas quem mais pode pagar é quem mais reclama de que paga muito.

UOL Notícias: A carga tributária não é elevada demais para o retorno social oferecido pelo governo?

Adib Jatene: Isso é uma falácia. Da carga tributária, é preciso retirar os recursos da Previdência Social, que não pertencem ao governo. Esses recursos são dos aposentados. Há 30 milhões de brasileiros recebendo aposentadoria. Isso não é benefício social. Tem países, como a China, nos quais o trabalhador não tem nenhum direito. Tem países em que a previdência é privada. No Brasil, ajustou-se um sistema, desde a época do presidente Getúlio Vargas, no qual seria retirada uma contribuição dos trabalhadores e dos empregadores, um recurso com destinação certa: o pagamento das pensões e aposentadorias. Isso tem que ser retirado da carga tributária, porque não pertence ao governo. Mesmo sem poder, o governo já fez isso no passado, quando havia um número reduzido de aposentados. Até para a construção da hidrelétrica de Itaipu foi usado dinheiro dos aposentados. Os grandes hospitais do Rio de Janeiro foram construídos todos com recursos da Previdência Social.
 
UOL Notícias: Qual é o tamanho da carga tributária brasileira se tirarmos da conta a Seguridade Social?


Adib Jatene: Se contar apenas os recursos que o governo pode utilizar, a carga tributária gira em torno de 25%. Se considerarmos um pouco de sonegação, um pouco menos do que isso. É por isso que vemos uma exuberância de determinados setores e uma pobreza enorme nos outros setores. Vá na avenida Berrini [zona sul da capital paulista] e veja toda aquela opulência, difícil de se encontrar em outros lugares do mundo. Mas ao lado vemos favelas, hospitais sem leito. É a assimetria característica do Brasil. O setor que conseguiu criar recursos, se desenvolver, quer crescer cada vez mais. E o setor que não tem recursos fica cada vez em maior dificuldade.

UOL Notícias: A elite brasileira é incapaz de estender a mão?

Adib Jatene: Esse é o problema. A elite financeira, a elite política, a elite intelectual... vive somente entre a elite. E quem se dispõe a ajudar os mais pobres e ir atrás dos recursos é combatido. O que o ministro José Gomes Temporão [Saúde] está fazendo é uma situação de desespero. Ele vê que pode fazer mais. Vê que tem uma parcela da população que tem tudo, da melhor forma que se faz no mundo. Mas ele não ignora que uma grande parcela da população não possui o mínimo para sobreviver. Ele vai buscar alguma coisa no orçamento e não consegue. Aí ele vem e propõe: "Eu preciso de R$ 10 bilhões a mais". É pouco. Ele precisa de, no mínimo, R$ 50 bilhões a mais. Mas as pessoas que podem oferecer isso sem nenhuma dificuldade, incluem qualquer novo tributo na sua planilha de custos, repassa o valor ao consumidor final e reclama.
UOL Notícias: Há quem diga que o problema da saúde, a exemplo da administração pública em geral, não é de falta de recursos, mas de gestão. O senhor concorda com isso?

Adib Jatene: Se há problema de gestão na administração pública, temos que falar com o ministro do Planejamento, o ministro da Fazenda. Se há alguma irregularidade na distribuição de recursos, nas licitações, no superfaturamento de obras, que eu ouço falar muito, é com eles que devemos falar, para apurar se houve desperdício de recursos públicos. Mas precisamos ver se na saúde pública há desperdício. Eu acho que não. Porque, na saúde, paga-se por serviços prestados. Quando fui ministro, combati fortemente as irregularidades e fraudes. Hoje, não sei se você notou, ninguém fala mais em irregularidades na saúde. Falam em falta de leito, em exame que demora, em falta de atendimento. Mas fraude eu não ouço mais falar.
UOL Notícias: Houve alguns episódios, como as denúncias da máfia das ambulâncias, da máfia dos sanguessugas, na compra de hemoderivados...

Adib Jatene: Isso ocorre em licitações. É crime e temos de punir os responsáveis. Mas, no pagamento das ações de saúde, ela é feita em relação a serviços já prestados. E como o volume de recursos é limitado, em cada Estado e município, há teto de pagamento para as instituições. Se um hospital atende acima do teto, o governo não paga. O hospital Beneficência Portuguesa atende pelo Sistema Único de Saúde. Cerca de 60% do atendimento é pela assistência pública. Mas o hospital recebe só 38%. O resto ele próprio precisa arcar. Vai entrevistar o Rubens Ermírio de Moraes, que é o atual presidente do hospital. Ele provavelmente dirá: "Ok, vocês não podem pagar mais do que 40% da minha capacidade, deixa eu atender o restante pelos planos de saúde, para que eu possa equilibrar minhas contas". Mas não, ele tem de atender a todos e arcar com a diferença. O Hospital das Clínicas também tem um teto. Se ele atende acima do teto, o governo não paga. É justo? É claro que não é justo. E o Ministério da Saúde não paga mais porque não tem dinheiro.
UOL Notícias: O senhor acredita que esse novo tributo será aprovado, a despeito de toda a pressão dos industriais contrários ao aumento da carga tributária?

Adib Jatene: O ministro da Saúde fez o seu papel. Porque ele tem a responsabilidade de dizer que estão faltando recursos, que ele não consegue obter mais verba dentro orçamento. Ele propôs uma alternativa. Se negarem os recursos, não foi por omissão dele. Antes de extinguir a CPMF, havia o compromisso do governo de repor ao menos R$ 25 bilhões para a Saúde. E não foi reposto. O ministro está pedindo R$ 10 bilhões, que representa 0,1% da movimentação financeira. O sujeito que movimenta R$ 1.000, vai pagar R$ 1. Quem movimenta R$ 100 mil por mês, vai gastar R$ 100. Ora, quem está nessa faixa de renda gasta muito mais que R$ 100 num almoço com a mulher no fim de semana. Mas ele não quer oferecer esse recurso. Então não venham acusar o ministro de não pelejar por uma saúde melhor.
UOL Notícias: Quando o senhor foi ministro, também teve de ficar com o pires na mão?

Adib Jatene: Sim. Eu vou dar um exemplo da diferença entre vinculação de recursos e a partilha do orçamento. Recentemente, as três universidades públicas paulistas (USP, Unicamp e Unesp) fizeram um balanço da vinculação de recursos. Até 1989, todas as greves nas universidades iam estourar no gabinete do governador. Nessa época, José Aristodemo Pinotti, que havia sido reitor da Unicamp, era secretário de Saúde do governador Orestes Quércia. Então, ele sugeriu ao Quércia vincular recursos para as três universidades. Estabeleceu-se 9,17% da arrecadação do ICMS. A USP ficou com 4,47% do ICMS. Nesta época, o orçamento da USP era exatamente igual ao do Hospital das Clínicas, cerca de US$ 300 milhões. A USP continuou com a sua parcela do ICMS, aumentou só um pouquinho a porcentagem, nada demais. E o Hospital das Clínicas ficou na disputa do orçamento ano a ano. Passados 20 anos, o orçamento da USP era mais que o dobro do orçamento do hospital.
UOL Notícias: Por que é tão difícil garantir recursos para a saúde na partilha do orçamento?

Adib Jatene: É um investimento que não tem retorno político. Sempre terá quem reclame, quem diga que precisava fazer mais. Mas se você faz uma grande obra, uma ponte estaiada, isso fica como realização do governo.
UOL Notícias: Pode construir um hospital, mas depois herdará as contas para mantê-lo funcionando...

Adib Jatene: Depois de inaugurado, você passa a gastar o dobro. Todo ano. O custo de manutenção anual costuma ser o dobro do investimento na construção. Se construir uma grande rede de hospitais, pode consumir todo o orçamento. Qual é a estratégia? Não faça. Eu tenho a prova aqui [diz, ao mostrar um mapa da cidade de São Paulo debaixo do tampo de vidro de sua mesa, na diretoria do HCor]. Temos 4 milhões de habitantes na cidade de São Paulo que moram em bairros sem nenhum leito hospitalar. Além disso, outros 4 milhões vivem em bairros com 1,2 leitos por mil habitantes, quando o mínimo aceitável seria 2,5 leitos. Enquanto isso, nós temos 1,8 milhão de pessoas vivendo em áreas que têm uma média de 13 leitos por mil habitantes, aí incluídos bairros como Jardim Paulista, Morumbi, Bela Vista. O descompasso é enorme, mesmo na cidade mais rica do país. O ministro da Saúde está no caminho certo, mas está pedindo pouco. Deveríamos caminhar para os 30% do orçamento da Seguridade, que daria algo em torno de R$ 120 bilhões.
UOL Notícias: Ao propor novos impostos, ele não sairá desgastado?

Adib Jatene: Quem tem dinheiro tem condições de mobilizar a imprensa, fazer propaganda para dizer que a população está sendo prejudicada, que o beneficiário é o prejudicado pela CPMF. Não existe opinião pública. O que existe é opinião publicada que forma a opinião pública. Só ganha eleição quem tem bom marqueteiro e quem tem dinheiro para financiar o marketing. Se os industriais fazem oposição à medida, o ministro da Saúde vai ter apoio de quem? Do centro de saúde da periferia? Bom, ele está fazendo seu papel, está indo para o Congresso pedir mais recursos.
 
UOL Notícias: E quando o ministro deixará de sair com um pires na mão, para reivindicar mais recursos para a Saúde?


Adib Jatene: Nunca. Com ou sem a nova CPMF, ele continuará de pires na mão, porque precisa de mais recursos para fazer um bom trabalho. Por isso que, quando brincaram comigo há um tempo atrás, perguntando se eu aceitaria voltar a ser ministro da Saúde, eu disse que não. Que só aceitaria ser ministro da Fazenda, porque aí eu realmente teria como interferir na aplicação do dinheiro público.
UOL Notícias: E nunca te convidaram para este posto?

Adib Jatene: Não... [risos]

UOL Notícias: Por que não foi possível corrigir o problema da falta de recursos após 20 anos de Sistema Único de Saúde?

Adib Jatene: A discussão gira em torno de duas opções. Disputar a partilha do orçamento federal ou ter recursos vinculados para a assistência médica. Disputar a partilha do orçamento é sempre desfavorável, porque a saúde precisa competir com os investimentos de infraestrutura, de áreas mais prestigiadas no governo. É por isso que insistimos que num setor como a saúde deve-se ter recursos vinculados. Eu lutei por isso. O ministro José Serra [hoje governador de São Paulo] lutou por isso. Eu consegui a CPMF, mas ela foi esvaziada. Porque, no momento em que os recursos da CPMF começaram a ingressar, a área econômica do governo passou a retirar, das fontes que o Ministério da Saúde já tinha, um valor superior ao da CPMF.

UOL Notícias: Isso por intermédio da Desvinculação das Receitas da União?

Adib Jatene: A desvinculação era um item. A CPMF, que deveria ser um recurso a mais, passou a ser substitutivo. Passou a substituir os recursos que foram retirados da Saúde. O problema todo foi esse. O orçamento deveria crescer. Mas isso não aconteceu, porque reduziram os recursos na outra ponta, pelo orçamento.
UOL Notícias: E os recursos foram retirados para fazer o quê?

Adib Jatene: Eu não sei. Para atender as outras necessidades do governo. Eu não discuto as outras necessidades. O que eu discuto é que, constitucionalmente, se ofereceu um sistema público de saúde para atender toda a população. E os parlamentares estabeleceram, nas disposições transitórias da Constituição, que 30% do orçamento da Seguridade Social deveria ser destinado à Saúde.
UOL Notícias: O que daria hoje algo em torno de quanto?

Adib Jatene: No ano passado, o orçamento da Seguridade deu algo em torno de R$ 430 bilhões. Trinta por cento daria R$ 129 bilhões. Mas o orçamento da Saúde ficou em pouco mais de R$ 50 bilhões. Esse descompasso deixou a saúde numa posição muito desconfortável. O setor privado dispõe de quase R$ 2.000,00 per capita ao ano. O sistema público tem R$ 650 per capita ao ano. Só que o setor privado trabalha apenas na assistência médica hospitalar e ambulatorial. Enquanto a saúde pública, além da assistência médica, trabalha na vigilância epidemiológica, na vigilância sanitária, nas imunizações, numa série de ações que o setor privado não faz.

UOL Notícias: É isso o que explica a diferença na qualidade de atendimento entre um hospital público e um privado?

Adib Jatene: Com os recursos de que dispõe, é impossível o setor público ter um nível de assistência mais diferenciado. Os profissionais da saúde têm lutado há muito tempo para conseguir recursos. O ministro da Saúde não consegue na partilha do orçamento mais do que ele já tem. Mas ele precisa de mais recursos. Ele tenta fazer alguma coisa que já foi feita no passado para garantir mais recursos.
UOL Notícias: Um novo tributo, à imagem e semelhança da CPMF...

Adib Jatene: Por que não? A CPMF não causou nenhum prejuízo. Tanto que, quando ela foi extinta, não houve nenhum impacto para a sociedade. Não baixou preço de nada, não houve nenhum impacto, nem para as empresas nem para o povo.
UOL Notícias: Porque a Previdência se retirou da saúde?

Adib Jatene: O número de aposentados cresceu. Hoje, cerca de 30 milhões de brasileiros vivem com recursos da Previdência. Paga-se pouco, mas dá para o sujeito viver. Então, como ainda dizem que a população não tem nenhum benefício? Quer comparar o nosso sistema de saúde com o da França ou Canadá? Eles gastam US$ 2.500 per capita. Isso dá quase R$ 5.000 per capita. Nós dispomos de apenas R$ 650 per capita. É desonesto fazer esse tipo de comparação. As pessoas se esquecem da evolução dos países. Os países da Europa ocidental se desenvolveram com a Revolução Industrial. Naquele período, houve uma grande migração das pessoas para as cidades. Só que os trabalhadores não tinham nenhum direito. Trabalhavam 16 horas por dia, inclusive crianças. O que aconteceu? Surgiu Karl Marx, que escreveu uma doutrina sobre a exploração do trabalhador pelo capital. Mas eles passaram por isso 200 anos antes. E, nessa época, esses países tinham colônias. Eles drenavam a riqueza do resto do mundo. As grandes cidades da Europa foram construídas no século 19. É uma história absolutamente distinta da nossa. A China, hoje, tem um grande desenvolvimento econômico, mas não dá nada para o trabalhador. E todo mundo acha formidável a China. No Brasil, pelo menos, o trabalhador tem aposentadoria.
 
UOL Notícias: Quer dizer que o Brasil optou por um modelo de desenvolvimento mais humano?


Adib Jatene: A sociedade brasileira decidiu garantir ao menos a previdência e a saúde, e se engrandece com essa escolha. Está cuidando daqueles que podem menos e dando as mínimas condições de sobrevivência. Mas o setor da saúde não tem o mínimo de recursos para dar assistência à toda população. Como o Brasil não tem o volume de recursos suficientes para fazer o saneamento, o transporte, a segurança, a habitação. O Brasil ainda é um país pobre, que se industrializou muito recentemente. Nós temos de correr atrás do prejuízo. Mas houve um setor da nossa sociedade que se desenvolveu, que vive hoje como se estivesse num país de US$ 40 mil de renda per capita. É este setor que tem grande compromisso de corrigir as desigualdades.

UOL Notícias: E não cumpre esse compromisso?

Adib Jatene: Resiste. Eu digo sempre que no Brasil existe a sonegação ilegal, que é crime, precisa ser apurado, e a sonegação legal.

UOL Notícias: O que seria a sonegação legal?

Adib Jatene: São itens na legislação que permitem ao sujeito não pagar impostos. O nosso setor de exportação, por exemplo, não paga nada. Quantos bilhões ele movimenta? Não importa, o setor não paga nada. Então, se diz: "Não podemos exportar impostos". Ok. Mas como é que vou atender tantas pessoas nos hospitais. Dizia-se que a CPMF era um imposto ruim, com efeito em cascata, que afetava no preço do pãozinho, do café, do feijão... Era de se esperar que, com a retirada da CPMF, desmontasse a cascata e isso resultasse numa redução de preços. Passado um ano, eu pergunto: Aconteceu? Nada, absolutamente nada, eram argumentos falsos.
UOL Notícias: Os defensores da CPMF também costumam ressaltar seu papel na prevenção da sonegação de impostos.

Adib Jatene: É verdade. Quando criaram a CPMF, a Receita Federal ficou proibida de cruzar as informações do tributo para verificar as declarações de imposto de renda. Foi preciso que o Everaldo Maciel [secretário da Receita Federal no governo Fernando Henrique Cardoso] demonstrasse que, dos cem maiores contribuintes da CPMF, 62 nunca haviam pago Imposto de Renda. Ele também demonstrou a existência de microempresas, que por definição não podem movimentar mais de R$ 100 mil por ano, movimentando R$ 100 milhões por ano. Então, se permitiu o cruzamento de dados. E a arrecadação cresceu absurdamente, só com o indicativo da sonegação propiciado pela CPMF.
UOL Notícias: Quanto o Sistema Único de Saúde paga por consulta?

Adib Jatene: Paga-se, em média, R$ 7. Na época do Inamps, pagava-se seis unidades de valor. Cada unidade correspondia a 1% do salário mínimo. O salário mínimo, hoje, é R$ 475. É só fazer as contas. Hoje, isso daria R$ 28,50, o mesmo que os planos de saúde pagam aos hospitais particulares. Algumas seguradoras pagam mais, a maioria gira em torno disso. Só que o SUS só paga R$ 7. E esse descompasso ocorre em todos os procedimentos. É uma situação insustentável. Fizemos o Programa Saúde da Família, para oferecer atendimento básico a toda a população. Alcançamos 100 milhões de pessoas. Falta quase a metade dos brasileiros. Por que não atendemos todo mundo? Falta dinheiro. Se eu quiser construir hoje um centro de saúde numa área com deficiência, o secretário do município pode me dizer: "Não faça, porque eu não tenho dinheiro para colocar o hospital em operação".

UOL Notícias: O senhor disse certa vez que, pelo o que o SUS oferece, talvez ele seja o sistema de saúde mais bem gerido do mundo. Por quê?

Adib Jatene: Quando você trabalha com grande deficiência de recursos, você apura o seu desempenho. E ele vem sendo apurado. Vários hospitais de primeira linha foram buscar no SUS os seus gestores. Quem é o superintendente do prestigiado hospital Sírio-Libanês? Gonçalo Vecina [ex-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e secretário da Saúde do município de São Paulo na gestão de Marta Suplicy (PT)]. Quer dizer que ele era um péssimo gestor quando estava no sistema público e agora é bom? Nada disso. O Sírio-Libanês e o Albert Einstein têm recursos para gerir bem. O SUS não tem recursos para gerir.
UOL Notícias: E o que consegue fazer com o pouco que tem?

Adib Jatene: Anualmente, o SUS interna 11 milhões de pessoas, faz 3 milhões de partos, 400 milhões de consultas. Nós erradicamos a poliomielite, o sarampo, a rubéola. Nós vacinamos mais do que qualquer país do mundo. Temos um programa de combate à Aids que é referência internacional. Fazemos hemodiálise para uma quantidade brutal de pessoas. Cirurgias complexas. Os transplantes de fígado feitos no Albert Einstein é o SUS que paga. Oncologia, medicamentos que os planos de saúde não cobrem... É um trabalho tão grande, que a população que pode deveria vir ajudar espontaneamente, e não obrigada por tributos.


Adib Jatene, 80 anos, foi secretário de Saúde do Estado de São Paulo e duas vezes ministro da Saúde, durante o governo Collor e na gestão de Fernando Henrique Cardoso. Também foi um dos diretores do Instituto do Coração, ligado à Universidade de São Paulo. Atualmente, é membro da Academia Nacional de Medicina e diretor-geral do Hospital do Coração (HCor). Além disso, preside a comissão de cursos de Medicina do Ministério da Educação, responsável por supervisionar a qualidade das graduações desta área no país.

Entrevista publicada originalmente no portal Uol, em 08 de setembro de 2009.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Contribuição social para a saúde é discutida em Brasília

Serra defende projeto de cobrança em hospital público em SP e diz que críticas são "trololó político"

Silvana Salles
Do UOL Notícias
Em São Paulo

O governador de São Paulo, José Serra (PSDB), afirmou nesta quinta-feira (3) que as críticas ao uso de parcerias com as OSs (organizações sociais) na área da saúde, permitindo o atendimento de pacientes particulares nos hospitais públicos, são "trololó político da ala sindicalista do PT".
A Assembleia Legislativa de São Paulo aprovou na quarta (2), por 55 votos a 17, o projeto de lei que permite que todos os hospitais estaduais sejam terceirizados e, apesar de públicos, atendam a pacientes particulares e de planos de saúde, mediante cobrança. Questionado sobre quando será sancionadoo projeto, Serra respondeu que ainda não viu a versão final do documento, que "será analisado pela Casa Civil".
José Serra afirmou que a legislação permite esse tipo de parceria nas novas unidades de saúde e que a medida ajuda a baixar o custo e aumentar os atendimentos. "Nas unidades administradas desta forma, o custo de manutenção é, em média, 10% menor, e o atendimento, 25% maior", estimou o governador.Serra evitou comentar sobre os projetos que tratam do pré-sal e sobre a saída do tucano Andrea Matarazzo da Secretaria das Subprefeituras de SP da administração Gilberto Kassab (DEM).A afirmação foi feita em inauguração oficial no instituto de reabilitação Lucy Montoro, na Vila Andrade, zona sul de São Paulo. O hospital será administrado em uma parceria com a fundação da Faculdade de Medicina da USP.

Governo espera "mobilização" nacional para aprovar a nova CPMF

Claudia Andrade
Do UOL Notícias
Em Brasília

Uma mobilização nacional, que envolva a prefeitos, governadores e a sociedade em torno da necessidade de aumentar os recursos para a saúde pode ser a saída para o impasse na votação da emenda 29, que estabelece percentuais mínimos de investimentos federais na saúde. É o que espera o ministro das Relações Institucionais, José Múcio Monteiro.
A polêmica gira em torno da criação da CSS (Contribuição Social para a Saúde), que substituiria a extinta CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira). A oposição tem barrado a aprovação do novo tributo na Câmara dos Deputados. O governo federal ressalta que o projeto é do Legislativo e tem ressalvas a entrar de cabeça na briga pela CSS, depois da derrota na disputa pela prorrogação da CPMF. Apenas um "fato novo" poderia mudar essa posição, segundo os congressistas. E esste "fato novo" poderia ser a mobilização a favor da ideia. Com isso, as responsabilidades pela criação do novo imposto seriam divididas.
O ministro da Saúde, José Gomes Temporão, defendeu mais recursos para sua pasta em reunião nesta quinta-feira (3), com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ministros e líderes da base aliada. Pelos cálculos do ministério, seriam necessários cerca de R$ 11,5 bilhões a mais por ano para a pasta. Esse montante, defendem os governistas, só seria atendido com a criação da CSS."Todos se manifestaram favoráveis (a mais recursos para a saúde). Mas precisa que haja uma mobilização de prefeitos, de governadores", disse o ministro José Múcio após a reunião desta quinta (3). Questionado sobre o custo político da aprovação de um novo imposto, o ministro disse que "a vida pública pressupõe coragem para enfrentar essas coisas". "Você tem a perspectiva de uma eleição, mas do outro lado pesa também a consciência de que a saúde está precisando de recursos."Ressaltando que a decisão sobre o novo tributo cabe ao Congresso, Múcio disse que a mobilização anterior do governo não surtiu efeito. "O palácio se empenhou também na CPMF, e não obtivemos sucesso. Temos que respeitar a vontade dos deputados e senadores". O deputado Darcísio perondi (PMDB-RS), presidente da Frente Parlamentar da Saúde, disse que, a partir da próxima semana, levará em média 300 pessoas ao Congresso para pressionar os parlamentares pela conclusão da votação da emenda 29. "O presidente Lula entendeu o que o ministro Temporão disse, que, no ano que vem, o quadro da saúde vai ser pior. Ele reconhece que o projeto é da Câmara, mas pediu apoio e mobilização. A recomendação do presidente é uma palavra de ordem de que a crise é verdadeira. O ministro Paulo Bernardo (Planejamento), na mesma tônica, disse que esse recurso é indispensável", avaliou.Governo x oposiçãoO líder do PT na Câmara, Henrique Fontana (RS), afirmou que a CSS "não pode ser encarada como uma questão de governo e oposição". "Temos que fazer um pacto e debater com toda a população brasileira e com líderes da base e da oposição. Ou há um pacto a favor da saúde brasileira, ou não há nada".Questionado sobre quando colocaria a emenda 29 na pauta de votações da Câmara, o presidente da Casa, Michel Temer (PMDB-SP), desconversou e disse que não tratou do assunto com o presidente Lula. Temer já reconheceu, em algumas ocasiões, que há resistências à proposta. O texto principal do projeto foi aprovado em junho do ano passado, mas sua conclusão depende da votação de um destaque da oposição que exclui do texto a base de cálculo da CSS. A nova contribuição teria uma alíquota de 0,10% e, como a CPMF, incidiria sobre todas as movimentações financeiras. Os recursos seriam destinados totalmente à saúde. A alíquota da CPMF, extinta no final de 2007, era de 0,38%. O governo defende que os novos recursos, se aprovados, sejam distribuídos da seguinte forma: 50% para a União, 25% para Estados e 25% para municípios.

Economia da Saúde


O IX Encontro Nacional de Economia da Saúde acontece entre os dias 07 e 09 de dezembro de 2009, no Rio de Janeiro. O evento, promovido pela Associação Brasileira de Economia da Saúde (Abres), terá como tema “20 anos de Abres, do SUS e a reafirmação da proteção social universal”.
Mais informações: www.abresbrasil.org.br