quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Cuidar, sim. Excluir, não.

Arthur Chioro *

Em 31/03/09 fomos surpreendidos com a inauguração de uma clínica para internação de pessoas que usam drogas em São Bernardo do Campo, numa parceria entre o grupo que controla um hospital psiquiátrico (Hospital Lacan) e o governo de São Paulo. Descobrimos, posteriormente, que se trata da segunda clínica implantada em nosso estado, uma vez que em Cotia já havia sido instalado serviço em condições semelhantes. Os recursos que custeiam tal empreendimento são provenientes do tesouro do estado (R$ 3.000,00 por paciente/mês) e serão repassados sob a forma de convênio, sem que o município, gestor do SUS, tenha qualquer tipo de regulação sobre o acesso ou o controle do serviço.

A implantação deste projeto não contou com a participação do município, em desacordo com o Pacto pela Saúde e as normas que definem as diretrizes de gestão, atendimento e financiamento do SUS. O projeto não foi discutido com as Secretarias de Saúde da região do ABC e sequer passou pelo Colegiado de Gestão Regional (CGR) como informe, embora tenha sido divulgado que os CAPS locais usariam articuladamente esse serviço. Os recursos que serão utilizados são públicos e, assim, pertencem ao SUS, exigindo que as instâncias que fazem parte deste último participem efetivamente do processo, pactuando e construindo a lógica de funcionamento do sistema.

Discordamos profundamente do modelo que rege o projeto e que fomenta a internação psiquiátrica como o tratamento em si, sem problematizar a experiência existencial dos sujeitos que irá atender. Entendemos também que a criação destes leitos fere a Lei Federal 10.216/01, que proíbe a instalação de novos leitos psiquiátricos no país.

A questão do uso de drogas, um fenômeno complexo e multifatorial, exige um diálogo também complexo. Não podemos incorrer no erro de tratá-la de forma maniqueísta e moralista. O que está em questão não é só a saúde, mas também a liberdade, o protagonismo, os projetos de vida, os direitos de cada pessoa, seja ela usuária de drogas, louca, ou o quer que seja.

Consideramos que avanços significativos têm sido alcançados pela reforma psiquiátrica no campo das drogas. Os CAPS tem tido importante papel nos territórios e nos percursos de seus usuários, na construção cotidiana de projetos de vida e na ampliação de possibilidades de existência. Entendemos que as situações de desintoxicação e os riscos trazidos pela abstinência devam ter o hospital geral como lugar de suporte. Não concordamos com a institucionalização e o puro controle das transgressões exercido pelo hospital psiquiátrico, as “clínicas” especializadas em internar e alienar as pessoas que usam e abusam de drogas.

Queremos que os usuários dos serviços de saúde mental sejam os protagonistas de seus percursos de vida, de suas escolhas, de seus desvios, que possam viver suas contingências. Nenhum sentido novo à existência é construído quando submetemos à força aqueles que desviam, e que, com suas transgressões, questionam valores que nos são caros. É comum querermos afastar tudo aquilo que nos faz lembrar de nossa própria condição trágica de humanidade.

A clínica especializada do governo de SP não vai tirar à força, como num parto a fórceps, a necessidade das pessoas que dependem das drogas. Não vai, como num passe de mágica, transformar a condição cotidiana de vida das pessoas a partir de dentro do hospital.

Mais do que nunca é preciso apoiar decididamente a reforma psiquiátrica, a política de redução de danos, a desinstitucionalização, a prática territorial, a produção de saúde e a construção de políticas afirmadoras da vida.

* Arthur Chioro é Secretário Municipal de Saúde de São Bernardo do Campo

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