segunda-feira, 14 de setembro de 2009

"Com ou sem a nova CPMF, ministro da Saúde continuará de pires na mão", diz Adib Jatene

Rodrigo Martins

Do UOL Notícias
Em São Paulo
 
Ex-ministro da Saúde, o cardiologista acreano Adib Jatene, diretor do Hospital do Coração (HCor), tem sustentado há tempos a necessidade de se aumentar os investimentos públicos no Sistema Único de Saúde (SUS). Para ele, as cenas de horror e os recorrentes problemas no atendimento dos hospitais estatais não derivam de problemas de gestão, e sim da crônica falta de recursos para a assistência médica gratuita. Considerado o pai da CPMF (Contribuição Provisória sobre a Movimentação Financeira), ele lutou pela aprovação do tributo em 1996, quando administrava a pasta da Saúde no governo de Fernando Henrique Cardoso.
Coerente com sua trajetória, o médico continua defendendo a criação de um tributo que vincule recursos para a saúde, razão pela qual cerra fileiras em defesa da Contribuição Social para a Saúde (CSS), proposta do governo Lula para ressuscitar a CPMF, com a cobrança de uma pequena porcentagem sobre as transações bancárias de empresas e pessoas físicas, objetivando a criação de um fundo para a saúde.

"Com os recursos de que dispõe hoje, é impossível o setor público oferecer uma assistência melhor às pessoas", avalia Jatene. "O ministro José Gomes Temporão está pedindo R$ 10 bilhões a mais. É pouco. Ele precisa de, no mínimo, mais R$ 50 bilhões. Com ou sem a nova CPMF, ele continuará com o pires da mão", conclui. Confira, a seguir, a entrevista que o médico concedeu ao UOL Notícias.



UOL Notícias: Por que o senhor defende a criação de um tributo para a saúde e a que atribui toda a mobilização pelo fim da CPMF?

Adib Jatene: A mobilização contra a CPMF surgiu da aversão aos impostos do setor mais diferenciado da sociedade. Os mais ricos resistem em assumir que são responsáveis por suprir necessidades da população de baixa renda. Há tempos a saúde pública precisa de mais recursos, especialmente após a ampliação da assistência a partir da Constituição de 1988. Mas, no momento em que se universalizou o acesso à saúde, simultaneamente, a Previdência Social se retirou do financiamento da assistência médica, causando um déficit para a saúde que até hoje não foi resolvido.

UOL Notícias: Isso porque, antes da Constituição de 1988, só tinha acesso à saúde pública quem tinha emprego formal e contribuía para a Previdência...

Adib Jatene: Sim, e eu já disse inúmeras vezes que os representantes regionais do extinto Inamps [Instituto Nacional Assistência Médica da Previdência Social] tinham mais poder que os secretários estaduais da saúde. Naquela época, uma grande parcela da população eram os indigentes, que não tinham direito a nada. E indigente era qualquer cidadão que não tinha emprego formal nem condições de pagar um hospital particular. No momento que universalizamos o atendimento, houve simultaneamente a crise da Previdência Social. O número de aposentados cresceu muito, até por conta da inclusão dos trabalhadores rurais no regime de aposentadorias. A Previdência chegou à conclusão de que não podia mais oferecer recursos para a saúde. O Inamps passou para o guarda-chuva do Ministério da Saúde e foram retirados todos os recursos da Previdência. Isso representou um rombo de mais de 50% no orçamento federal para a saúde. É isso que vem se tentando corrigir sem sucesso.

UOL Notícias: O senhor acha que a CPMF era um bom tributo?

Adib Jatene: Não estou discutindo se o tributo é bom ou ruim. Ofereçam-me outro tributo que seja melhor ou recursos de outra fonte. Houve oposição cerrada à CPMF porque ninguém queria pagar. Extinguiram-se R$ 40 bilhões, recursos que eram utilizados pelo governo. Você acha que, com as demandas do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) e de uma série de outras ações do governo, eles vão tirar recursos de outras áreas para dar para a saúde? Um país democrático tem que entender que o governo não gera recursos. Ele arrecada da atividade privada. Todo o dinheiro que governo tem sai das empresas, das pessoas. Se o governo passasse a imprimir dinheiro, criaria inflação. Em vez disso, ele cobra de quem pode pagar. Mas quem mais pode pagar é quem mais reclama de que paga muito.

UOL Notícias: A carga tributária não é elevada demais para o retorno social oferecido pelo governo?

Adib Jatene: Isso é uma falácia. Da carga tributária, é preciso retirar os recursos da Previdência Social, que não pertencem ao governo. Esses recursos são dos aposentados. Há 30 milhões de brasileiros recebendo aposentadoria. Isso não é benefício social. Tem países, como a China, nos quais o trabalhador não tem nenhum direito. Tem países em que a previdência é privada. No Brasil, ajustou-se um sistema, desde a época do presidente Getúlio Vargas, no qual seria retirada uma contribuição dos trabalhadores e dos empregadores, um recurso com destinação certa: o pagamento das pensões e aposentadorias. Isso tem que ser retirado da carga tributária, porque não pertence ao governo. Mesmo sem poder, o governo já fez isso no passado, quando havia um número reduzido de aposentados. Até para a construção da hidrelétrica de Itaipu foi usado dinheiro dos aposentados. Os grandes hospitais do Rio de Janeiro foram construídos todos com recursos da Previdência Social.
 
UOL Notícias: Qual é o tamanho da carga tributária brasileira se tirarmos da conta a Seguridade Social?


Adib Jatene: Se contar apenas os recursos que o governo pode utilizar, a carga tributária gira em torno de 25%. Se considerarmos um pouco de sonegação, um pouco menos do que isso. É por isso que vemos uma exuberância de determinados setores e uma pobreza enorme nos outros setores. Vá na avenida Berrini [zona sul da capital paulista] e veja toda aquela opulência, difícil de se encontrar em outros lugares do mundo. Mas ao lado vemos favelas, hospitais sem leito. É a assimetria característica do Brasil. O setor que conseguiu criar recursos, se desenvolver, quer crescer cada vez mais. E o setor que não tem recursos fica cada vez em maior dificuldade.

UOL Notícias: A elite brasileira é incapaz de estender a mão?

Adib Jatene: Esse é o problema. A elite financeira, a elite política, a elite intelectual... vive somente entre a elite. E quem se dispõe a ajudar os mais pobres e ir atrás dos recursos é combatido. O que o ministro José Gomes Temporão [Saúde] está fazendo é uma situação de desespero. Ele vê que pode fazer mais. Vê que tem uma parcela da população que tem tudo, da melhor forma que se faz no mundo. Mas ele não ignora que uma grande parcela da população não possui o mínimo para sobreviver. Ele vai buscar alguma coisa no orçamento e não consegue. Aí ele vem e propõe: "Eu preciso de R$ 10 bilhões a mais". É pouco. Ele precisa de, no mínimo, R$ 50 bilhões a mais. Mas as pessoas que podem oferecer isso sem nenhuma dificuldade, incluem qualquer novo tributo na sua planilha de custos, repassa o valor ao consumidor final e reclama.
UOL Notícias: Há quem diga que o problema da saúde, a exemplo da administração pública em geral, não é de falta de recursos, mas de gestão. O senhor concorda com isso?

Adib Jatene: Se há problema de gestão na administração pública, temos que falar com o ministro do Planejamento, o ministro da Fazenda. Se há alguma irregularidade na distribuição de recursos, nas licitações, no superfaturamento de obras, que eu ouço falar muito, é com eles que devemos falar, para apurar se houve desperdício de recursos públicos. Mas precisamos ver se na saúde pública há desperdício. Eu acho que não. Porque, na saúde, paga-se por serviços prestados. Quando fui ministro, combati fortemente as irregularidades e fraudes. Hoje, não sei se você notou, ninguém fala mais em irregularidades na saúde. Falam em falta de leito, em exame que demora, em falta de atendimento. Mas fraude eu não ouço mais falar.
UOL Notícias: Houve alguns episódios, como as denúncias da máfia das ambulâncias, da máfia dos sanguessugas, na compra de hemoderivados...

Adib Jatene: Isso ocorre em licitações. É crime e temos de punir os responsáveis. Mas, no pagamento das ações de saúde, ela é feita em relação a serviços já prestados. E como o volume de recursos é limitado, em cada Estado e município, há teto de pagamento para as instituições. Se um hospital atende acima do teto, o governo não paga. O hospital Beneficência Portuguesa atende pelo Sistema Único de Saúde. Cerca de 60% do atendimento é pela assistência pública. Mas o hospital recebe só 38%. O resto ele próprio precisa arcar. Vai entrevistar o Rubens Ermírio de Moraes, que é o atual presidente do hospital. Ele provavelmente dirá: "Ok, vocês não podem pagar mais do que 40% da minha capacidade, deixa eu atender o restante pelos planos de saúde, para que eu possa equilibrar minhas contas". Mas não, ele tem de atender a todos e arcar com a diferença. O Hospital das Clínicas também tem um teto. Se ele atende acima do teto, o governo não paga. É justo? É claro que não é justo. E o Ministério da Saúde não paga mais porque não tem dinheiro.
UOL Notícias: O senhor acredita que esse novo tributo será aprovado, a despeito de toda a pressão dos industriais contrários ao aumento da carga tributária?

Adib Jatene: O ministro da Saúde fez o seu papel. Porque ele tem a responsabilidade de dizer que estão faltando recursos, que ele não consegue obter mais verba dentro orçamento. Ele propôs uma alternativa. Se negarem os recursos, não foi por omissão dele. Antes de extinguir a CPMF, havia o compromisso do governo de repor ao menos R$ 25 bilhões para a Saúde. E não foi reposto. O ministro está pedindo R$ 10 bilhões, que representa 0,1% da movimentação financeira. O sujeito que movimenta R$ 1.000, vai pagar R$ 1. Quem movimenta R$ 100 mil por mês, vai gastar R$ 100. Ora, quem está nessa faixa de renda gasta muito mais que R$ 100 num almoço com a mulher no fim de semana. Mas ele não quer oferecer esse recurso. Então não venham acusar o ministro de não pelejar por uma saúde melhor.
UOL Notícias: Quando o senhor foi ministro, também teve de ficar com o pires na mão?

Adib Jatene: Sim. Eu vou dar um exemplo da diferença entre vinculação de recursos e a partilha do orçamento. Recentemente, as três universidades públicas paulistas (USP, Unicamp e Unesp) fizeram um balanço da vinculação de recursos. Até 1989, todas as greves nas universidades iam estourar no gabinete do governador. Nessa época, José Aristodemo Pinotti, que havia sido reitor da Unicamp, era secretário de Saúde do governador Orestes Quércia. Então, ele sugeriu ao Quércia vincular recursos para as três universidades. Estabeleceu-se 9,17% da arrecadação do ICMS. A USP ficou com 4,47% do ICMS. Nesta época, o orçamento da USP era exatamente igual ao do Hospital das Clínicas, cerca de US$ 300 milhões. A USP continuou com a sua parcela do ICMS, aumentou só um pouquinho a porcentagem, nada demais. E o Hospital das Clínicas ficou na disputa do orçamento ano a ano. Passados 20 anos, o orçamento da USP era mais que o dobro do orçamento do hospital.
UOL Notícias: Por que é tão difícil garantir recursos para a saúde na partilha do orçamento?

Adib Jatene: É um investimento que não tem retorno político. Sempre terá quem reclame, quem diga que precisava fazer mais. Mas se você faz uma grande obra, uma ponte estaiada, isso fica como realização do governo.
UOL Notícias: Pode construir um hospital, mas depois herdará as contas para mantê-lo funcionando...

Adib Jatene: Depois de inaugurado, você passa a gastar o dobro. Todo ano. O custo de manutenção anual costuma ser o dobro do investimento na construção. Se construir uma grande rede de hospitais, pode consumir todo o orçamento. Qual é a estratégia? Não faça. Eu tenho a prova aqui [diz, ao mostrar um mapa da cidade de São Paulo debaixo do tampo de vidro de sua mesa, na diretoria do HCor]. Temos 4 milhões de habitantes na cidade de São Paulo que moram em bairros sem nenhum leito hospitalar. Além disso, outros 4 milhões vivem em bairros com 1,2 leitos por mil habitantes, quando o mínimo aceitável seria 2,5 leitos. Enquanto isso, nós temos 1,8 milhão de pessoas vivendo em áreas que têm uma média de 13 leitos por mil habitantes, aí incluídos bairros como Jardim Paulista, Morumbi, Bela Vista. O descompasso é enorme, mesmo na cidade mais rica do país. O ministro da Saúde está no caminho certo, mas está pedindo pouco. Deveríamos caminhar para os 30% do orçamento da Seguridade, que daria algo em torno de R$ 120 bilhões.
UOL Notícias: Ao propor novos impostos, ele não sairá desgastado?

Adib Jatene: Quem tem dinheiro tem condições de mobilizar a imprensa, fazer propaganda para dizer que a população está sendo prejudicada, que o beneficiário é o prejudicado pela CPMF. Não existe opinião pública. O que existe é opinião publicada que forma a opinião pública. Só ganha eleição quem tem bom marqueteiro e quem tem dinheiro para financiar o marketing. Se os industriais fazem oposição à medida, o ministro da Saúde vai ter apoio de quem? Do centro de saúde da periferia? Bom, ele está fazendo seu papel, está indo para o Congresso pedir mais recursos.
 
UOL Notícias: E quando o ministro deixará de sair com um pires na mão, para reivindicar mais recursos para a Saúde?


Adib Jatene: Nunca. Com ou sem a nova CPMF, ele continuará de pires na mão, porque precisa de mais recursos para fazer um bom trabalho. Por isso que, quando brincaram comigo há um tempo atrás, perguntando se eu aceitaria voltar a ser ministro da Saúde, eu disse que não. Que só aceitaria ser ministro da Fazenda, porque aí eu realmente teria como interferir na aplicação do dinheiro público.
UOL Notícias: E nunca te convidaram para este posto?

Adib Jatene: Não... [risos]

UOL Notícias: Por que não foi possível corrigir o problema da falta de recursos após 20 anos de Sistema Único de Saúde?

Adib Jatene: A discussão gira em torno de duas opções. Disputar a partilha do orçamento federal ou ter recursos vinculados para a assistência médica. Disputar a partilha do orçamento é sempre desfavorável, porque a saúde precisa competir com os investimentos de infraestrutura, de áreas mais prestigiadas no governo. É por isso que insistimos que num setor como a saúde deve-se ter recursos vinculados. Eu lutei por isso. O ministro José Serra [hoje governador de São Paulo] lutou por isso. Eu consegui a CPMF, mas ela foi esvaziada. Porque, no momento em que os recursos da CPMF começaram a ingressar, a área econômica do governo passou a retirar, das fontes que o Ministério da Saúde já tinha, um valor superior ao da CPMF.

UOL Notícias: Isso por intermédio da Desvinculação das Receitas da União?

Adib Jatene: A desvinculação era um item. A CPMF, que deveria ser um recurso a mais, passou a ser substitutivo. Passou a substituir os recursos que foram retirados da Saúde. O problema todo foi esse. O orçamento deveria crescer. Mas isso não aconteceu, porque reduziram os recursos na outra ponta, pelo orçamento.
UOL Notícias: E os recursos foram retirados para fazer o quê?

Adib Jatene: Eu não sei. Para atender as outras necessidades do governo. Eu não discuto as outras necessidades. O que eu discuto é que, constitucionalmente, se ofereceu um sistema público de saúde para atender toda a população. E os parlamentares estabeleceram, nas disposições transitórias da Constituição, que 30% do orçamento da Seguridade Social deveria ser destinado à Saúde.
UOL Notícias: O que daria hoje algo em torno de quanto?

Adib Jatene: No ano passado, o orçamento da Seguridade deu algo em torno de R$ 430 bilhões. Trinta por cento daria R$ 129 bilhões. Mas o orçamento da Saúde ficou em pouco mais de R$ 50 bilhões. Esse descompasso deixou a saúde numa posição muito desconfortável. O setor privado dispõe de quase R$ 2.000,00 per capita ao ano. O sistema público tem R$ 650 per capita ao ano. Só que o setor privado trabalha apenas na assistência médica hospitalar e ambulatorial. Enquanto a saúde pública, além da assistência médica, trabalha na vigilância epidemiológica, na vigilância sanitária, nas imunizações, numa série de ações que o setor privado não faz.

UOL Notícias: É isso o que explica a diferença na qualidade de atendimento entre um hospital público e um privado?

Adib Jatene: Com os recursos de que dispõe, é impossível o setor público ter um nível de assistência mais diferenciado. Os profissionais da saúde têm lutado há muito tempo para conseguir recursos. O ministro da Saúde não consegue na partilha do orçamento mais do que ele já tem. Mas ele precisa de mais recursos. Ele tenta fazer alguma coisa que já foi feita no passado para garantir mais recursos.
UOL Notícias: Um novo tributo, à imagem e semelhança da CPMF...

Adib Jatene: Por que não? A CPMF não causou nenhum prejuízo. Tanto que, quando ela foi extinta, não houve nenhum impacto para a sociedade. Não baixou preço de nada, não houve nenhum impacto, nem para as empresas nem para o povo.
UOL Notícias: Porque a Previdência se retirou da saúde?

Adib Jatene: O número de aposentados cresceu. Hoje, cerca de 30 milhões de brasileiros vivem com recursos da Previdência. Paga-se pouco, mas dá para o sujeito viver. Então, como ainda dizem que a população não tem nenhum benefício? Quer comparar o nosso sistema de saúde com o da França ou Canadá? Eles gastam US$ 2.500 per capita. Isso dá quase R$ 5.000 per capita. Nós dispomos de apenas R$ 650 per capita. É desonesto fazer esse tipo de comparação. As pessoas se esquecem da evolução dos países. Os países da Europa ocidental se desenvolveram com a Revolução Industrial. Naquele período, houve uma grande migração das pessoas para as cidades. Só que os trabalhadores não tinham nenhum direito. Trabalhavam 16 horas por dia, inclusive crianças. O que aconteceu? Surgiu Karl Marx, que escreveu uma doutrina sobre a exploração do trabalhador pelo capital. Mas eles passaram por isso 200 anos antes. E, nessa época, esses países tinham colônias. Eles drenavam a riqueza do resto do mundo. As grandes cidades da Europa foram construídas no século 19. É uma história absolutamente distinta da nossa. A China, hoje, tem um grande desenvolvimento econômico, mas não dá nada para o trabalhador. E todo mundo acha formidável a China. No Brasil, pelo menos, o trabalhador tem aposentadoria.
 
UOL Notícias: Quer dizer que o Brasil optou por um modelo de desenvolvimento mais humano?


Adib Jatene: A sociedade brasileira decidiu garantir ao menos a previdência e a saúde, e se engrandece com essa escolha. Está cuidando daqueles que podem menos e dando as mínimas condições de sobrevivência. Mas o setor da saúde não tem o mínimo de recursos para dar assistência à toda população. Como o Brasil não tem o volume de recursos suficientes para fazer o saneamento, o transporte, a segurança, a habitação. O Brasil ainda é um país pobre, que se industrializou muito recentemente. Nós temos de correr atrás do prejuízo. Mas houve um setor da nossa sociedade que se desenvolveu, que vive hoje como se estivesse num país de US$ 40 mil de renda per capita. É este setor que tem grande compromisso de corrigir as desigualdades.

UOL Notícias: E não cumpre esse compromisso?

Adib Jatene: Resiste. Eu digo sempre que no Brasil existe a sonegação ilegal, que é crime, precisa ser apurado, e a sonegação legal.

UOL Notícias: O que seria a sonegação legal?

Adib Jatene: São itens na legislação que permitem ao sujeito não pagar impostos. O nosso setor de exportação, por exemplo, não paga nada. Quantos bilhões ele movimenta? Não importa, o setor não paga nada. Então, se diz: "Não podemos exportar impostos". Ok. Mas como é que vou atender tantas pessoas nos hospitais. Dizia-se que a CPMF era um imposto ruim, com efeito em cascata, que afetava no preço do pãozinho, do café, do feijão... Era de se esperar que, com a retirada da CPMF, desmontasse a cascata e isso resultasse numa redução de preços. Passado um ano, eu pergunto: Aconteceu? Nada, absolutamente nada, eram argumentos falsos.
UOL Notícias: Os defensores da CPMF também costumam ressaltar seu papel na prevenção da sonegação de impostos.

Adib Jatene: É verdade. Quando criaram a CPMF, a Receita Federal ficou proibida de cruzar as informações do tributo para verificar as declarações de imposto de renda. Foi preciso que o Everaldo Maciel [secretário da Receita Federal no governo Fernando Henrique Cardoso] demonstrasse que, dos cem maiores contribuintes da CPMF, 62 nunca haviam pago Imposto de Renda. Ele também demonstrou a existência de microempresas, que por definição não podem movimentar mais de R$ 100 mil por ano, movimentando R$ 100 milhões por ano. Então, se permitiu o cruzamento de dados. E a arrecadação cresceu absurdamente, só com o indicativo da sonegação propiciado pela CPMF.
UOL Notícias: Quanto o Sistema Único de Saúde paga por consulta?

Adib Jatene: Paga-se, em média, R$ 7. Na época do Inamps, pagava-se seis unidades de valor. Cada unidade correspondia a 1% do salário mínimo. O salário mínimo, hoje, é R$ 475. É só fazer as contas. Hoje, isso daria R$ 28,50, o mesmo que os planos de saúde pagam aos hospitais particulares. Algumas seguradoras pagam mais, a maioria gira em torno disso. Só que o SUS só paga R$ 7. E esse descompasso ocorre em todos os procedimentos. É uma situação insustentável. Fizemos o Programa Saúde da Família, para oferecer atendimento básico a toda a população. Alcançamos 100 milhões de pessoas. Falta quase a metade dos brasileiros. Por que não atendemos todo mundo? Falta dinheiro. Se eu quiser construir hoje um centro de saúde numa área com deficiência, o secretário do município pode me dizer: "Não faça, porque eu não tenho dinheiro para colocar o hospital em operação".

UOL Notícias: O senhor disse certa vez que, pelo o que o SUS oferece, talvez ele seja o sistema de saúde mais bem gerido do mundo. Por quê?

Adib Jatene: Quando você trabalha com grande deficiência de recursos, você apura o seu desempenho. E ele vem sendo apurado. Vários hospitais de primeira linha foram buscar no SUS os seus gestores. Quem é o superintendente do prestigiado hospital Sírio-Libanês? Gonçalo Vecina [ex-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e secretário da Saúde do município de São Paulo na gestão de Marta Suplicy (PT)]. Quer dizer que ele era um péssimo gestor quando estava no sistema público e agora é bom? Nada disso. O Sírio-Libanês e o Albert Einstein têm recursos para gerir bem. O SUS não tem recursos para gerir.
UOL Notícias: E o que consegue fazer com o pouco que tem?

Adib Jatene: Anualmente, o SUS interna 11 milhões de pessoas, faz 3 milhões de partos, 400 milhões de consultas. Nós erradicamos a poliomielite, o sarampo, a rubéola. Nós vacinamos mais do que qualquer país do mundo. Temos um programa de combate à Aids que é referência internacional. Fazemos hemodiálise para uma quantidade brutal de pessoas. Cirurgias complexas. Os transplantes de fígado feitos no Albert Einstein é o SUS que paga. Oncologia, medicamentos que os planos de saúde não cobrem... É um trabalho tão grande, que a população que pode deveria vir ajudar espontaneamente, e não obrigada por tributos.


Adib Jatene, 80 anos, foi secretário de Saúde do Estado de São Paulo e duas vezes ministro da Saúde, durante o governo Collor e na gestão de Fernando Henrique Cardoso. Também foi um dos diretores do Instituto do Coração, ligado à Universidade de São Paulo. Atualmente, é membro da Academia Nacional de Medicina e diretor-geral do Hospital do Coração (HCor). Além disso, preside a comissão de cursos de Medicina do Ministério da Educação, responsável por supervisionar a qualidade das graduações desta área no país.

Entrevista publicada originalmente no portal Uol, em 08 de setembro de 2009.

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