Juan Carlos Aneiros Fernandez, pesquisador e secretário executivo do Cepedoc Cidades Saudáveis - (Centro de Estudos, Pesquisa e Documentação), explica o que é uma cidade saudável, enfatizando a importância de se terem políticas públicas centradas no interesse social e participação comunitária na definição dos problemas e das demandas na área de saúde.
Criado em 2000, por integrantes da "Oficina Permanente de Cidades Saudáveis", organizada pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), o Cepedoc Cidades Saudáveis auxilia municípios e comunidades a ingressarem no Movimento por Cidades Saudáveis e realiza estudos e pesquisas de melhoria de qualidade de vida nas cidades.
Mobilizadores COEP - Algumas cidades de todo o mundo concentram grandes contingentes populacionais e enfrentam diversos desafios. Quais os principais problemas em termos de promoção da saúde enfrentados por essas grandes cidades?
R. Como a promoção da saúde atua com foco nos determinantes sociais da saúde*1, os problemas que se tem de enfrentar nessas situações não diferem daqueles reconhecidos por todas as áreas como decorrentes dos processos de urbanização – no nosso caso, uma urbanização acelerada e sem um planejamento adequado. São alguns exemplos a desigualdade social, a precariedade de infraestrutura urbana e de serviços públicos em diversos territórios da cidade, a degradação ambiental, a contaminação do ar e dos mananciais de água, o tempo gasto com deslocamentos dentro da cidade.
Poderíamos destacar o fato de que os óbitos em São Paulo, a exemplo do que ocorre em outras grandes cidades brasileiras, decorrem primeiramente de doenças do aparelho circulatório, seguidas de causas externas, que incluem acidentes e outros tipos de violência. Ambos os grupos de causas poderiam ser minimizados com modificações nos modos de vida e nas condições geradoras de estresse. Teríamos assim um leque bastante amplo de ações possíveis, desde aquelas relacionadas diretamente à escolha de estilos de vida saudáveis pelos indivíduos - e da criação das condições necessárias a essa escolha – até aquelas que asseguram proteção social e o enfrentamento das iniquidades.
Mobilizadores COEP - De que forma esses problemas podem ser enfrentados, especialmente nos países em desenvolvimento, como o Brasil?
R. Colocando a saúde da população como foco das políticas públicas de modo geral. Isso significa partir do pressuposto de que não existe desenvolvimento se não há justiça social. Parece ser necessário inverter a lógica do interesse econômico, do mercado e do lucro a qualquer preço. A área da saúde pode oferecer um bom exemplo para isso.
Não adianta insistir apenas na prática curativa, na especialização para o trato de doenças mais raras, no desenvolvimento desenfreado de medicamentos, se as pessoas estão morrendo por causas associadas à pobreza, à falta de oportunidades de realização pessoal, à falta de saneamento básico e de acesso a níveis básicos de educação e proteção social.
O Brasil é um bom exemplo para a garantia de acesso a serviços via Sistema Único de Saúde. O SUS expressa a mobilização social em torno de um novo sanitarismo que realizou a crítica que estou tentando resumir. A concepção desse sistema de saúde e sua implementação corroboram para a produção da saúde nos termos aqui apresentados. Porém, também o SUS sofre as pressões do interesse e dos agentes econômicos em níveis nacional e internacional. A defesa e o fortalecimento desse sistema para que ele possa cumprir na íntegra suas promessas de atenção integral e de enfrentamento de iniquidades é certamente uma das formas de enfrentar os problemas de nosso tempo.
Outra questão de extrema importância para se enfrentar os problemas atuais nas grandes cidades parece ser a descentralização político-administrativa. Essa seria uma forma de tornar mais acessível aos indivíduos e comunidades a gestão de políticas públicas.
Mobilizadores COEP - Como a forma de desenvolvimento do Brasil tem afetado as condições de saúde da população? Quais os principais desafios hoje?
R. Acho que já está respondido, mas talvez caiba acrescentar que temos tido alguns avanços recentemente. Mal ou bem, já existe alguma preocupação ambiental instituída e um movimento, ainda que pequeno, de redução das desigualdades. Penso que sejam muitos os grandes desafios, mas o principal para relacionar desenvolvimento e saúde talvez seja uma mudança de paradigma, tanto em relação ao desenvolvimento, frequentemente associado apenas ao crescimento econômico, quanto em relação à saúde, frequentemente associada à ausência de doenças. Isso quer dizer que temos como desafio pensar que não há um desenvolvimento de fato se não houver produção e ampliação da qualidade de vida.
Mobilizadores COEP - O que caracteriza uma cidade saudável?
R. Um forte compromisso de autoridades, comunidades e outros atores sociais de buscar permanentemente melhorias na qualidade de vida da população. Uma cidade saudável é aquela que assume os princípios da participação social, intersetorialidade, sustentabilidade e equidade na gestão das políticas públicas.
Mobilizadores COEP - Quais os principais indicadores de uma cidade saudável?
R. É muito difícil eleger indicadores que sejam adequados indistintamente a todas as cidades. É possível ter cidades saudáveis que apresentem diferenças significativas em relação a um mesmo indicador. Em uma determinada cidade as pessoas e grupos envolvidos na construção de uma cidade saudável podem avaliar que a inexistência de áreas de lazer seja um dos entraves à obtenção de melhores níveis de qualidade de vida. Em outra cidade, o indicador principal pode ser o acesso a cursos profissionalizantes ou voltados para a geração de renda. Em outro caso, elevar o grau de confiança da população no poder público, um dos elementos importantes da chamada governança, pode ser o desafio para construir a cidade saudável. Reconheço a dificuldade para operar com indicadores nessa perspectiva, o que dificulta muito a comparação e, sobretudo, a classificação de municípios, mas ao mesmo tempo vejo também nisso uma grande potência, isto é, a proposta de cidades saudáveis é aberta o bastante para que seus atores se sintam confortáveis dentro dela. Por isso, a melhor resposta a esta pergunta seria que os principais indicadores de uma cidade saudável são aqueles que os atores envolvidos elegerem como significativos para aferir melhorias na qualidade de vida.
Mobilizadores COEP - Quais os objetivos do Movimento por Cidades Saudáveis? Como e quando foi criado?
R. O objetivo da estratégia de Cidades Saudáveis é promover saúde. O movimento surgiu como uma proposta da Organização Mundial de Saúde – Organização Pan-Americana de Saúde (OMS-OPAS), em meados dos anos de 1980, que seria profícua para implementar as estratégias definidas na Carta de Ottawa de 1986*2, aprovada na primeira Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde.
O documento surge em um contexto de democratização dos países sul e centro-americanos e, portanto, comprometido com a idéia do “empowerment”*3 social e do desenvolvimento comunitário. Do ponto de vista da área da saúde propriamente dita, a promoção da saúde e o movimento por cidades saudáveis – uma de suas estratégias - expressam também uma mudança nos modos de entender e de se produzir saúde. Reafirmam a superação das práticas de saúde centradas na atenção médica curativa, para buscar a globalidade de fatores que determinam a saúde, como desigualdade de renda, condições de moradia e trabalho, educação etc.
O movimento buscava fomentar a definição de políticas públicas saudáveis (preocupação explícita com a saúde e equidade), promover a construção de parcerias, a troca de experiências, a experimentação de modelos de gestão integrada e participativa, assim como o estímulo às práticas de avaliação participativas.
Mobilizadores COEP - De que forma as comunidades são envolvidas no movimento? E o que é feito para fomentar essa participação?
R. Não há uma receita para o modo de envolvimento das comunidades. Depende das condições dadas em cada uma das situações (tamanho da cidade, estrutura preexistente de participação ou controle social, tipo de plano de ação imaginado, local de onde parte a experiência). De toda forma, sugere-se a constituição de um comitê intersetorial, que inclua governo e sociedade civil, a elaboração participativa de um planejamento estratégico, a realização de oficinas de diagnóstico de problemas e potencialidades etc.
Mobilizadores COEP - Como as associações comunitárias podem atuar para equacionar problemas de saúde e promover melhores condições de vida para suas populações?
R. Saúde e qualidade de vida têm uma dimensão subjetiva de extrema relevância. Os sujeitos individuais e coletivos devem ter a oportunidade de refletir sobre quais sejam seus problemas de saúde e suas aspirações nesse sentido. Ver reconhecidos seus saberes e poder integrá-los ou relacioná-los a outros saberes é uma forma de ampliar a capacidade de controle sobre os determinantes sociais da saúde.
Promover a reflexão sobre saúde entre seus associados, buscar o estabelecimento de redes e parcerias com outras organizações, respeitando um quadro de pluralidade e diversidade. Perceber o quanto a saúde depende não apenas dos serviços de saúde, mas das políticas públicas de um modo geral, e, em razão disso, engajar-se e aproveitar todas as oportunidades existentes de atuação na esfera pública parece ser um bom caminho para a promoção de melhorias na qualidade de vida das populações. Conhecer mais sobre a gestão pública, ocupar e alargar os espaços de participação, acompanhamento e fiscalização.
Mobilizadores COEP - O que os cidadãos podem fazer para reivindicar uma cidade mais saudável?
R. Talvez não se trate tanto de reivindicar uma cidade saudável, mas sim de ajudar a construí-la. A perspectiva da estratégia de cidades saudáveis é colaborativa, é de corresponsabilidade, de pactuação, negociação e assim por diante. Uma cidade saudável se constrói com justiça social, com cidadania, com relações solidárias, com envolvimento com as questões públicas, com ampliação da confiança entre indivíduos, entre grupos e entre estes e os governos.
Mobilizadores COEP - Segundo informações que constam no site do movimento, as ações são localizadas em São Paulo. Existe a possibilidade de ampliar o campo de atuação? O que seria necessário para isso? Como um município ou comunidade pode participar?
R. A estratégia de cidades saudáveis não teve no Brasil o mesmo desenvolvimento verificado na América Latina de modo geral. Ao longo dos últimos 15 ou 20 anos, diversas cidades por todo o país adotaram e abandonaram essa estratégia, entre elas algumas capitais como Curitiba (PR), Goiânia (GO) e São Paulo (SP), em uma de suas subprefeituras.
Entre outras, são razões para isso, por um lado, a característica de nossa cultura política e de gestão que favorece a descontinuidade das políticas e, por outro lado, a inexistência de uma política nacional de fomento e/ou de custeio de iniciativas dessa natureza. Há um campo aberto para atuação. Exemplo disso são as redes de municípios saudáveis existentes tanto em Pernambuco, fomentada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), como aquela fomentada por pesquisadores ligados à Unicamp na região de Campinas (SP).
Também, há cerca de um ano, houve uma retomada da estratégia de Cidades Saudáveis por parte do Ministério da Saúde brasileiro, que promoveu o encontro e constituição de um comitê provisório da rede de cidades saudáveis no Brasil. Isso pode, em curto prazo, produzir uma ampliação do campo de atuação, já que novas medidas de estímulo à adoção da estratégia podem surgir desses encontros.
Mobilizadores COEP - O que uma rede nacional de mobilização social como o COEP pode fazer para contribuir para a disseminação de comunidades saudáveis? Quais as principais ações a serem adotadas?
R. Disponibilizar informações acerca de uma visão ampliada de saúde que vai além da ausência de doenças. Acompanhar de perto, ou de dentro, esse movimento recente do Ministério da Saúde a que me referi. Convocar indivíduos e organizações sociais a ocuparem, de fato, os espaços abertos de interlocução com políticas públicas de modo geral, de forma a torná-los cada vez mais amplos, confortáveis e significativos.
Nosso site é um problema sério, isto é, parece que não conseguimos dar conta de mantê-lo atualizado, mas há um “Guia de gestores” na seção de publicações, que é um material da OPAS que ajudamos a elaborar e que traz, de modo muito simples, propostas para constituir municípios e comunidades saudáveis. Ele poderia também ser divulgado.
Notas:
*1 Determinantes sociais de saúde (DSS) são as condições sociais em que as pessoas vivem e trabalham ou "as características sociais dentro das quais a vida transcorre” (Tarlov,1996). Alguns desses determinantes são biológicos ou estão sob maior controle do indivíduo (ex: certas condutas individuais); outros, de abrangência coletiva, são dependentes de políticas públicas e das condições políticas, econômicas, sociais, culturais e ambientais existentes. Para promover saúde é preciso atuar sobre os determinantes (pessoais e não-pessoais) da saúde.
*2 A Carta de Ottawa reafirma a importância da promoção à saúde e aponta, principalmente, a influência dos aspectos sociais sobre a saúde dos indivíduos e da população, caracterizando-se como o "processo de capacitação da comunidade para atuar na melhoria de sua qualidade de vida e saúde, incluindo uma maior participação no controle deste processo". Ela enfatiza a importância de cinco estratégias fundamentais para se alcançar plena saúde: política pública, ambiente saudável, reforço da ação comunitária, criação de habilidades pessoais e reorientação do serviço de saúde.
*3 Empowerment, que tem sido traduzido em português pela palavra empoderamento, parte da idéia de dar às pessoas o poder, a liberdade e a informação que lhes permitam tomar decisões e participar ativamente de processos sociais, organizacionais, etc.
Entrevista concedida a: Eliane Araujo
Edição: Eliane Araujo e Renata Olivieri
Mobilizadores COEP (Rede de incentivo à prática social criada pelo Comitê de Entidades no Combate à Fome e Pela Vida)
sexta-feira, 18 de setembro de 2009
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